Sempre ouvi dizer que quando um sujeito pula de um prédio, de uma altura considerável, antes de seu corpo chegar ao chão, ele já é morto. Isso é parcialmente verdade, dependendo de como se considera a questão: visto que do chão não passará e que é impossível voltar atrás, depois que já se está em queda livre, de fato, “é morto” só depende da variável “em quantos segundos estatelar-se-á”. Fora isso, não. Pois digo que senti cada osso do meu corpo sendo esfarelado, músculos rasgando e uma dor lancinante antes de, efetivamente, morrer. E, durante o percurso do décimo sexto andar até a laje, percebi tudo em infinito desespero. Claro que não espero que alguém acredite de fato nisso, porque também não sou
eu propriamente a fazer esta narrativa... Como poderia?
Eu estou morto! E que não se acredite, também, em vida após a morte:
eu sou a
prova viva de que só há morte na morte e que a vida encerra-se em vida, a morte
não faz parte da vida.
De qualquer maneira, estas palavras estão sendo alinhavadas por alguém, que se diz passar por mim, e que conta uma história como se fosse em primeira pessoa. Repito: não endossem uma palavra sequer disto tudo!
Mas o drama começou num subsolo de algum prédio comercial. Lá, no subsolo, ficava o almoxarifado, em que toneladas de papéis inúteis faziam sua função de ocupar espaço precioso onde, se não houvesse aqueles papéis, nada mais haveria. Nesta saleta, em especial, lá num canto obscuro, e escondida atrás de um arquivo-morto, existia uma tomada esquecida pelo tempo e por sua inutilidade intrínseca – já que não havia a menor possibilidade de se usar, num almoxarifado abarrotado de tralhas e que também fazia as vezes de depósito de lixo, qualquer dispositivo elétrico que fosse. Nem luminárias, nem aparelhos de som ou mesmo uma TV. Menos ainda um computador. Aquela tomada só foi lembrada quando, um mês após o incidente, durante a perícia, constatou-se que o incêndio havia começado pelo almoxarifado, por causa de um curto-circuíto (aparentemente acidental) no lugar errado, mas com a quantidade certa de papéis velhos e secos ao seu redor.
O fogo tem esta natureza peculiar de alastrar-se para cima e, como de hábito, assim se deu. Em sua absoluta falta de originalidade, as chamas foram comendo os papéis, depois o forro de madeira, as divisórias dos escritórios, os papéis de parede. Algumas pessoas, que estavam no térreo e no segundo andar, conseguiram se safar. Não porque tivessem notado o início do incêndio, mas por pura coincidência: foram comer um cachorro-quente, tomar um café, fumar um cigarro... Qualquer coisa. Parece que, inclusive, teve um gordinho que foi salvo por causa do cachorro-quente e que uma semana depois, caiu duro num enfarte. Nenhuma providência divina ou destino nesta história: o médico cardiologista já havia observado e lhe comunicara que seu colesterol estava alto e foi enfático quando falou dos riscos a sua saúde. Ele não escutou.
Enfim, mas voltando ao incêndio: a minha sala – na qual
eu, não o narrador, trabalhava – estava localizada no sétimo andar. No momento em que meus colegas e eu entendemos a gravidade da situação, já era impossível sair do prédio (porque, lembre-se: o fogo sobe e é bastante convicto quanto isto.) Não havia como descermos. Portanto, subimos. O fogo, também. Desesperados, confiávamos no trabalho dos bombeiros, mas não tínhamos noção do estado das coisas: quando se está dentro do incêndio, é difícil pensar com clareza suficiente para se admitir que, realmente, já não havia mais como controlar a situação.
Meus colegas começaram a tombar, como dominós, um a um, um após outro, e outro, e outro, asfixiados pela fumaça. Fui engatinhando, resfolegando através de um pedaço de pano embebido em água, subindo como podia diversos degraus da escada de emergência. E assim o fiz até o décimo quarto andar. Lá, pela primeira vez, ao olhar para trás e notar que eu estava
sozinho, notando as salas vazias, sem luz, todos os computadores desligados, observando pelas paredes envidraçadas uma nuvem negra a contorcer-se em volta do prédio: sim, admiti, em absoluto terror, que aquele era o
ponto de não retorno. O último sinal de luta que meu corpo manifestou foi um rompante de fúria, em que senti as veias das têmporas pulsando e, no ímpeto que a adrenalina me propunha, subi correndo mais dois lances das escadarias. A fumaça era a mesma que eu observara dois andares abaixo. Corri em direção à janela para unir-me a ela e, quem sabe, eu também flutuaria.
O que me faz crer que este último delírio foi bastante equivocado é o fato de que meu corpo está sendo velado, enquanto algum
idiota escreve palavras como se fossem as
minhas.