Entre meados de 2004 e final de 2005, trabalhei em um call-center aqui em Porto Alegre. Como muitos devem saber - tendo trabalhado em um ou não -, esse não é exatamente o emprego dos sonhos de ninguém. Estressante, maçante, sem perspectiva. Além disso, há que se lidar com as pessoas através de um telefone, sem o "tete-a-tete" - e normalmente, quando a situação já está pra lá de saturada; daí liga-se mais para descarregar a tensão do que necessariamente para resolver qualquer coisa. O salário, também, é uma porcaria. Enfim, por "n" motivos, é difícil se sentir bem em uma função que exige evasivas e subversões dos fatos a todo instante.
Mas, como diz o dito popular: ossos do ofício. Qualquer que seja a função que se exerça, sempre haverá um revés, um calo pra coçar, a pulga atrás da orelha... Entretanto, eventualmente recebia-se uma ou outra ligação que, por algum motivo, era a válvula de escape senão da semana, pelo menos do dia em questão. Ou porque a situação era engraçada, ou porque o esforço para tentar ajudar aquela "alma desamparada" terminava com um sincero "muito obrigado", ou porque a voz da interlocutora era algo sexy...
E eis aí uma questão: atendi, certa feita, duas cariocas que conversaram comigo ao mesmo tempo, uma no telefone principal e a outra na extensão. Nessa ocasião, a voz sexy era... A MINHA! Não que eu seja o Cid Moreira ou o Mun-Ra dos Thundercats (é, tem gosto pra tudo neste mundo). Mas as meninas realmente curtiram meu timbre e ficaram bem "animadinhas" durante a conversa. Essa, por exemplo, foi uma daquelas situações em que realmente se consegue esquecer um pouco o marasmo da central telefônica. O interessante desse exemplo é que não sou um cara "bonitão", mas realmente elas devem ter me imaginado como tal. E eu não tiro a razão, porque por vezes acontece o inverso: a voz da menina do outro lado é tão cativante que se enxerga uma morena mignonzinho numa lingiere vermelha, deitada numa cama com lençóis de cetim, enrolando o fio do telefone com o indicador enquanto conversa-se sobre um problema qualquer a ser contornado...
Meus devaneios à parte, num mundo como o explicitado no livro/filme do Saramago, "Ensaios Sobre A Cegueira", a estética talvez tivesse um outro fator muito mais relevante do que a atual beleza física: seria a beleza da voz a nova "ditadura da moda". Claro, o resto do corpo deveria preservar uma certa integridade em relação aos padrões atuais, visto que o que conhecemos como belo levaria um tempo para sair das nossas mentes ante a nova condição de deficiência visual em que estaríamos, e ainda teríamos - e como teríamos! - o tato para compensar, mas com certeza novos parâmetros seriam, inevitavelmente, estabelecidos.
Isso tudo é uma ideia fantástica, em todas as concepções da palavra, até porque provavelmente jamais acontecerá. Mas a possibilidade de pensar e questionar o quão frágeis e fúteis são nossos valores e ideais - e estou usando um exemplo extremamente abrangente, a beleza física -, é algo de valor inestimável.