A casa fica à beira do rio, com dois metros de orla que fazia as vezes de calçada. Dentro da casa, de madeira mas com banheiro de material, com azulejos e tudo o mais, várias quinquilharias valiosas: calotas de carros, portaretratos, violões quebrados e por aí afora; posses que outrora eram de diversas pessoas, agora, era tudo parte de seu almoxarifado particular.
Ele saia de manhã para trabalhar e no percurso ia coletando essas miudezas, de vez em quando nem tão miúdas assim... Não era casado, nunca fora. Não tinha filhos, tampouco os queria. Pai e mãe já há muito falecidos. Amigos? Talvez o cusco, guardião da residência, fosse o mais próximo a isso – e não podia reclamar, nesse sentido, pois que não havia no mundo companheiro mais presente e fiel que aquele vira-latas.
A construção civil era o seu ganha pão. Pão dormido e mofado, velho e insosso, mas não passava fome. Era um bom servente: dedicado, caprichoso e pontual. A única reclamação que frequentemente se escutava a seu respeito era aquela sobre seu jeito: sempre de cabeça baixa, caladão. Ele não se importava, chegou a conclusao de que tinha todas aquelas posses e um amigo verdadeiro – o que é mais difícil de se achar do que diversos amigos de trago, não é mesmo?
E assim ele sobrevivia ao cotidiano, aumentando sua fortuna e espólio e estreitando os laços de amizade com o herdeiro das contas – seu companheiro canino. Para todos os que estavam alheios ao seu mundo, nada naquela vida valia qualquer coisa; e o significado de tal existência, aonde fica? Fato é que para ele o mundo externo ao seu também não significava nada.
Fatídico foi o dia em que, por conta do aquecimento global – algo que ela já havia escutado no radinho de pilha, aquela caixa de abelhas -, o nível do rio subiu demais e sua casa ficou reduzida ao banheiro. Sua mina de riquezas, seus pertences mais preciosos, aquela tentativa desesperada por uma nesga de dignidade, que justificava sua bizarra coleção de objetos, fora destruída por um dos males do mundo exterior, essa coisa da enchente...
Perdeu sua casa, seus pertences e, por isso, sua identidade. Até mesmo o cachorro o abandonou, outra força do mundo exterior: o tal do controle de zoonoses.
E ele, que nunca havia feito parte daquele mundo louco, o qual ele simplesmente não entendia – e nunca fizera a menor questão de entender -, acabou por ser notado e comentado por todos na cidade: saiu estampado na manchete da capa da frente do principal jornal da capital, a chamada da matéria como o reflexo e o exemplo da grave crise social em que vivemos: “Indigente pula da ponte ao meio dia, causando engarrafamento”. Na verdade, ele não o fez por mal; se soubesse que iria causar tamanho transtorno, teria se jogado de madrugada.